Aqui se encontram todos os contos do escritor inglês Lord Byron já publicados no Covil.
Os títulos estão dispostos em ordem alfabética.
Beaudoin o Calvo, conde das Flandres, fez cercar Bruges de muralhas e construiu nelas quatro portões. Beaudoin o Jovem aí estabeleceu as feiras e concedeu grandes privilégios aos mercadores. Beaudoin da Bela Barba completou as muralhas e instituiu para administrar a cidade treze fiscais de preços e vários outros conselheiros, que escolheu na burguesia e nos grandes e pequenos ofícios.
Depois veio Beaudoin à la Hache, ou Balduíno do Machado, assim denominado porque tinha o hábito de servir-se, em vez da espada, de um machado pesando quinze quilos. Era um severo justiceiro esse conde. A reforma de quase todos os abusos e a punição de todos os crimes datam de seus dias. Relatarei dois exemplos da maneira como fazia justiça.
Três mercadores de jóias e perfumes, que pelas roupas podiam ser reconhecidos como orientais, dirigiam-se, no ano de 1112, a uma feira que devia ter lugar em Thourout, e pousaram no Hotel da Cruz de Ouro. Sucedeu que no mesmo hotel estava hospedado, com alguns de seus amigos, o Sr. Henry de Calloo, um dos mais ricos e nobres senhores do País de Gales, o qual precisamente acabara de perder no jogo somas enormes. Por mais rico que fosse, não sabia como pagá-las. Vendo os mercadores e suas esplêndidas mercadorias, o demônio o tentou, e veio-lhe a idéia fatal de apoderar-se de suas jóias e dinheiro.
Antes de partir, os mercadores enviaram na frente servidores com o encargo de lhes prepararem os alojamentos. Pensando que não tinham nada a temer, deixaram Bruges duas horas após seus mensageiros.
Henry de Calloo e seus amigos deixaram que eles tomassem a dianteira. Então, alcançando-os no momento em que atravessavam um bosque, caíram sobre eles e os assassinaram. Tendo conduzido os cadáveres à parte mais densa do bosque, apoderaram-se de todo o ouro e jóias que os infelizes mercadores tinham consigo.
Entretanto, os servidores, depois de terem tudo preparado para a chegada de seus senhores, vieram aguardá-los na porta da cidade. Como o tempo corria e os mercadores não chegavam, começaram a preocupar-se, e viram então chegar Henry de Calloo com seus companheiros. Saíram imediatamente ao seu encontro, para lhes perguntar se, posto que dispunham de tão boas montarias, não tinham encontrado e ultrapassado seus senhores. Mas os flamengos responderam, com um ar perfeitamente natural, que não compreendiam essa pergunta, visto que os mercadores, tendo partido de Bruges bem na frente deles, já deveriam ter chegado a Thourout àquela hora.
Essa resposta redobrou os temores dos criados, que a partir daí se separaram. Três ficaram na porta da cidade e três voltaram pelo caminho de Bruges. Chegados ao bosque, viram a terra manchada de sangue. Seguiram o rastro, e após alguns passos dentro do bosque encontraram os três cadáveres. Então, sem perder um instante, sem mesmo fazê-los transportar, foram correndo a Wynendaele, onde estava o conde, para denunciar o crime e pedir-lhe vingança.
Beaudoin ouviu-os com a atenção e a gravidade que exigia semelhante denúncia. Quando terminaram o relato e o conde lhes tinha feito detalhar todas as circunstâncias, perguntou-lhes se não tinham alguma suspeita sobre quais seriam os autores do assassinato. Os pobres servidores entreolharam-se, tremendo e sem ousar responder. Mas interrogados novamente pelo conde de maneira mais premente, responderam que as únicas pessoas sobre as quais podiam recair suas suspeitas, se lhes era dado ousar suspeitar de poderosos senhores, eram Henry de Calloo e seus dois companheiros.
A acusação era tanto mais grave quanto atingia personagens dos mais elevados. Beaudoin então ordenou que os denunciantes fossem mantidos sob vigilância num castelo, enquanto ia sozinho a Thourout. Com efeito, mandou selar seu cavalo, e sem dizer a ninguém para onde ia nem permitir que ninguém o acompanhasse, partiu a galope. De resto, como era habitual vê-lo fazer essas expedições solitárias, e contanto que levasse seu machado, ninguém se preocupava. Seus criados viram-no afastar-se ao longe, dizendo entre si:
— Bem, amanhã ouviremos contar alguma coisa de novo.
Atravessando a grande praça de Thourout, Beaudoin notou um grande ajuntamento de povo, que começava a se dissolver. É que naquele mesmo lugar acabavam de ser executados dois falsários de moedas, de sorte que os caldeirões cheios de azeite fervente, onde haviam sido jogados, estavam ainda lá. Beaudoin, ao passar, ordenou que se reacendesse o fogo sob os caldeirões, a fim de que o azeite se mantivesse num grau de ebulição conveniente, e continuou seu caminho.
Chegando ao albergue onde estavam hospedados Henry de Calloo e seus dois companheiros, fez-se reconhecer pelo hospedeiro, e como eles haviam saído, subiu com este ao quarto. Seus cofres estavam no chão e fechados a chave. O conde mandou romper as fechaduras, e aí encontraram as jóias dos mercadores.
Logo Beaudoin fez prender Henry de Calloo e seus dois cúmplices. Tendo-os feito conduzir à praça pública, onde os aguardava, interrogou-os com tal severidade que, graças às provas que o conde tinha já em mãos, não ousaram sequer por um instante negar seu crime.
Assim que a confissão foi feita, e sem dar-lhes tempo de tomar nenhuma providência, o conde fê-los agarrar, vestidos e armados como estavam, e os fez jogar nos caldeirões, à vista do povo, que teve assim dois espetáculos no mesmo dia.
Um outro dia, Beaudoin acabava de ter a assembléia de seus Estados em Ypres. Como era uma grande cerimônia, e para dar-lhe ainda mais brilho, havia naquele dia armado seis cavaleiros, todos pertencentes às mais nobres famílias das Flandres. Segundo o juramento habitual, estes haviam prometido dar proteção aos fracos, às viúvas e aos órfãos, mediante o que Beaudoin lhes dera a accolade com suas próprias mãos.
Concluída a cerimônia, Beaudoin retornou a seu castelo, acompanhado dos novos cavaleiros que armara. Quando atravessavam a floresta dos seus domínios, notou os preparativos de uma festa. Detiveram-se um instante, e viram efetivamente chegar um cortejo de camponeses acompanhando um novo casal. Beaudoin avançou até a esposa, e tirando um anel de seu dedo, entregou-o a ela e disse:
— Posto que o acaso conduziu-me pelo vosso caminho, que este acaso seja para vós uma providência. Se tiverdes alguma vez necessidade de mim, enviai-me este anel e pedi minha assistência, ela não vos faltará.
A exemplo dele, cada um dos cavaleiros que o seguia deu um presente à jovem, e a cavalgada senhorial retomou o caminho do castelo.
A oportunidade de usar o anel não se fez esperar. No meio de seu primeiro sono, o conde foi acordado por um de seus escudeiros. Mostrando-lhe o anel, este lhe disse que um camponês ofegante e coberto de pó acabava de trazê-lo da parte da recém-casada da floresta. Beaudoin mandou logo que fosse introduzido o camponês, que era irmão do marido. Relatou que, quando a recém-casada era conduzida à nova residência do casal, fora raptada pelos seis novos cavaleiros. O esposo e seus amigos quiseram opor resistência, mas como estavam sem armas, foram repelidos. Dois ou três camponeses haviam recebido ferimentos bastante graves, tanto que a pobre jovem não teve senão tempo de jogar o anel, gritando ao seu marido: “Leve este anel ao Conde Beaudoin!” Mas o marido, que quis vingar-se por si mesmo, dera o anel ao seu irmão, incumbindo-o da missão. Em seguida, chamando toda a aldeia em seu auxílio, preparou-se para perseguir os raptores.
Beaudoin, não querendo acreditar em tamanha audácia, subiu aos aposentos dos cavaleiros e os encontrou vazios. Interrogou a sentinela, que confirmou que os cavaleiros haviam saído cerca de uma hora e meia antes.
O conde voltou ao pequeno camponês, perguntou-lhe para que lado se tinham dirigido os raptores, e este lhe respondeu que tinham tomado o caminho da Maison Rouge, uma taverna muito mal afamada, situada nos arredores do castelo. Beaudoin não duvidou mais que os culpados estivessem lá. Mandou que dez de seus homens se armassem o mais rapidamente possível e o alcançassem, levando pregos e cordas. Quanto a ele, saltou no primeiro cavalo, com o machado à mão, e dirigiu-se para a taverna suspeita.
Logo que avistou a Maison Rouge, Beaudoin convenceu-se de que não se enganara. O primeiro andar, fortemente iluminado, reboava com gargalhadas, imprecações e blasfêmias, enquanto o andar térreo estava escuro, mudo e solitário. Beaudoin apeou, amarrou seu cavalo a uma das argolas da parede e bateu à porta. Mas depois da terceira vez, vendo que ninguém vinha atendê-lo, arrombou a porta com um ponta-pé e entrou.
O andar inferior estava solitário e escuro. Guiado pelas vozes que ouvia, Beaudoin subiu a escada e logo achou-se diante da porta do recinto do qual provinha todo o barulho. A chave estava na fechadura, pois os cavaleiros acreditavam estar suficientemente protegidos pelas precauções que tomaram no andar térreo. Beaudoin abriu a porta sem dificuldade, lançou um olhar rápido pelo quarto e viu a jovem fortemente amarrada, enquanto seus raptores jogavam dados para ver a quem ela pertenceria.
A aparição de Beaudoin foi como um raio para os culpados. Lançaram um grito de terror, ao qual a jovem respondeu por um grito de alegria. Pelos olhares que Beaudoin dardejava, viram logo que estariam perdidos se não fugissem o mais depressa possível. Precipitaram-se em direção à escada, mas o conde postou-se diante da porta, com seu machado à mão, ameaçando fender a cabeça do primeiro que fizesse qualquer movimento. Todos permaneceram imóveis.
Nesse momento, Beaudoin viu fora a luz das tochas e ouviu o galope dos cavalos que conduziam seus homens de armas.
— Aqui! — gritou-lhes ele.
Entraram pela porta arrombada, subiram a escada e apareceram detrás do conde.
— Tendes os pregos e as cordas?
— Sim, meu senhor.
— Fixai seis pregos nesta trave e preparai seis cordas.
Os cavaleiros empalideceram, vendo bem que tudo estava terminado para eles. Alguns começaram a pedir perdão, outros a se confessar em voz alta. Mas Beaudoin, sem dar-lhes ouvidos, apressava a montagem, de modo que depois de alguns minutos os pregos estavam afixados e os nós corrediços prontos.
Então fez colocar um banco debaixo das cordas, e ordenou aos seis cavaleiros que subissem no banco. Uns obedeceram com resignação, outros quiseram oferecer resistência, mas uns e outros acabaram subindo. Ao cabo de um instante, os seis cavaleiros tinham a corda ao pescoço. Beaudoin lançou um último olhar sobre eles, para ver se estava tudo bem em ordem. Depois, satisfeito com a inspeção, afastou o banco com um ponta-pé, e os seis cavaleiros acharam-se bem e devidamente enforcados.
Nisto ouviu-se um grande alarido. Era o marido, que chegava com todos os jovens da aldeia, armados de picaretas e forcados. Beaudoin fê-los entrar todos no quarto, mostrando-lhes de um lado a jovem, que devolvia a seu esposo, virgem como havia sido raptada, e de outro os culpados já punidos. A justiça do conde andara mais depressa que a vingança do marido.
Beaudoin morreu deixando a Carlos da Dinamarca o seu Condado de Flandres, em recompensa pelos grandes serviços que este prestara aos cristãos na Palestina. Carlos da Dinamarca, depois chamado Carlos o Bom, era filho de São Canuto, Rei da Dinamarca, e de Adélia da Frísia.
Alexandre Dumas, Pai
Extraído do blog Contos bem Contados
O príncipe Troubetzkoi aproximou-se e deu-me a mão. Ele não vinha só para isso, mas também para me convidar a uma caça ao lobo no bosque de Gatchina, onde se diz que os lobos são tão abundantes como as lebres na floresta de Saint-Germain.
A caça aos lobos, juntamente com a caça ao urso, é uma das diversões favoritas dos russos. Apenas que, como os descendentes de Rourik gostam do perigo enquanto perigo, inventaram uma caçada que oferece dois perigos ao mesmo tempo: primeiro, o de ser devorado pelos lobos, como Balduíno I, imperador de Constantinopla; segundo, o de espatifar-se junto com o carro, como Hipólito, filho de Teseu.
Essa engenhosa invenção se realiza no inverno, é claro, época em que a falta de alimento torna os lobos ferozes. Entram numa troika três ou quatro caçadores, cada um com um fuzil de dois tiros. A troika é um carro qualquer (drojky, kibitk, caleça ou tarantass) com três cavalos atrelados. O nome lhe vem da atrelagem, e não da forma.
O cavalo do meio não deve em nenhum momento deixar o trote, enquanto o da direita e o da esquerda não devem em nenhum momento deixar o galope. O do meio trota com a cabeça baixa, e é chamado comedor de neve. Seus dois parceiros, que não têm mais que uma rédea, são atrelados pelo meio do corpo ao varal do carro e galopam com a cabeça virada, um para a direita e o outro para a esquerda. São chamados furiosos. Assim conduzida, a atrelagem toma o aspecto de um leque.
Um cocheiro que tenha segurança — se é que há no mundo um cocheiro seguro — conduz a troika. Detrás do carro, com uma corda ou uma corrente de uns dez metros, amarra-se um leitão. Inicialmente o leitão é cuidadosamente transportado dentro do carro, até a entrada do local onde se conta começar a caçada. Ali é descido, e o cocheiro solta os cavalos, que avançam, sendo o do meio trotando e os das alas a galope.
O leitão, pouco habituado a essa marcha, lança queixas que degeneram logo em lamentações. A essas lamentações, um primeiro lobo mostra seu focinho e começa a ir ao encalço do porco, depois dois lobos, depois três, dez, cinqüenta lobos. Todos disputam o leitão e brigam entre si para se aproximar, um dando-lhe uma patada, outro uma dentada. Das lamentações o pobre animal passa aos gritos desesperados. Esses gritos vão despertar os lobos nas profundezas mais recônditas da floresta.
Tudo o que há de lobo em três léguas ao redor acorre, e a troika vê-se perseguida por uma matilha de lobos. Nessa hora é importante ter-se um bom cocheiro. Os cavalos, que têm pelos lobos um horror instintivo, tornam-se aloucados. O que trota quereria galopar, os que galopam quereriam desembestar.
Durante todo esse tempo os caçadores atiram ao léu. Nem há necessidade de apontar. O porco grita, os cavalos relincham, os lobos uivam, os fuzis troam. É um concerto que daria inveja a Mefistófeles no “sabbat”. Coche, caçadores, porco, matilha de lobos, são um turbilhão levado pelo vento. A neve voa em torno, como uma nuvem de tormenta deslizando no ar, lançando relâmpagos e raios.
Enquanto o cocheiro é senhor de seus cavalos, por mais precipitados que sejam, tudo vai bem. Mas se ele perde o controle, se a atrelagem se detém, se a troika vira, então tudo acaba. No dia seguinte, no outro, ou oito dias depois, encontram-se os restos do carro, os canos dos fuzis, as carcaças dos cavalos e os ossos maiores dos caçadores e do cocheiro.
No último inverno, o príncipe Repnin fez uma dessas caçadas, e pouco lhe faltou para que não fosse a última. Estava com dois de seus amigos, numa propriedade que limita com a estepe. Resolveram caçar lobos, ou melhor, fazer-se caçar pelos lobos. Preparou-se um amplo trenó, onde duas ou três pessoas podiam mover-se à vontade. Atrelaram-se três robustos cavalos, que foram confiados a um cocheiro nascido na região e muito experiente. Cada caçador tinha um par de fuzis duplos e cento e cinqüenta cartuchos.
Os lugares foram distribuídos assim: o príncipe Repnin voltado para trás, e cada um de seus amigos voltado para um dos lados. Chegaram à estepe, ou seja, a um imenso deserto coberto de neve. Era uma caçada noturna. A lua, no seu pleno, reluzia com o mais vivo brilho, e seus raios, refletidos pela neve, difundiam uma claridade que podia rivalizar com a do dia.
O porco foi baixado e o trenó partiu. Sentindo-se puxado contra sua vontade, o porco gritou. Alguns lobos apareceram, mas de início pouco numerosos, medrosos, conservando-se a uma grande distância. Pouco a pouco seu número aumentou, e à medida que aumentavam, aproximavam-se dos caçadores, que para iniciar não comunicaram à sua troika mais que uma marcha comum, apesar da impaciência medrosa dos cavalos. Eram vinte lobos, mais ou menos, quando se encontraram bastante próximos para começar o massacre.
Um tiro de fuzil partiu, um lobo caiu. Um grande tumulto se fez, e pareceu aos caçadores que o bando ficara reduzido pela metade. Com efeito, contrariamente ao provérbio que diz que os lobos não se comem entre si, sete ou oito esfomeados ficaram atrás, para devorar o morto. Mas logo os vazios foram preenchidos. De todos os lados ouviam-se uivos respondendo a uivos; de todos os lados viam-se aparecer focinhos pontudos e faiscar olhos semelhantes a carvões acesos.
Os lobos estavam ao alcance, e os caçadores faziam fogo continuamente. Mas por mais que os tiros acertassem, o bando ia sempre aumentando, em vez de diminuir. Em breve não foi mais um bando, foi uma matilha cujas fileiras cerradas seguiam os caçadores. Sua corrida era tão rápida que pareciam voar sobre a neve, tão ligeira que não fazia o menor ruído. A onda de lobos se aproximava sem cessar, como uma maré muda, e não recuava perante o fogo dos três caçadores, por mais nutrido que fosse. Formavam atrás da troika um enorme crescente, cujas duas pontas começavam a ultrapassar a linha dos cavalos.
O número de lobos aumentou com tal rapidez, que se diria que saíam de debaixo da terra. Havia qualquer coisa de fantástico em sua aparição. Não se podia, com efeito, entender a presença de dois a três mil lobos no meio de um deserto onde, em toda uma jornada de viagem, descobrir-se-iam apenas dois ou três.
Fizeram o porco cessar de gritar, puxando-o para dentro do trenó, uma vez que seus gritos redobravam a audácia dos perseguidores. O tiroteio não cessava, e já tinham usado mais da metade da munição. Restavam uns duzentos tiros, e estavam rodeados ainda por dois ou três mil lobos. Os dois cornos do crescente avançavam mais e mais, e ameaçavam fechar-se, formando um círculo do qual o trenó, os cavalos e os caçadores tornar-se-iam o centro.
Se um dos cavalos caísse, tudo acabaria. Os cavalos, espantados, bufavam e davam saltos terríveis.
— O que pensas disto, Ivan? — perguntou o príncipe ao seu cocheiro.
— Penso que não está bem, meu príncipe.
— Temes alguma coisa?
— Os demônios provaram sangue, e quanto mais vós atirardes, mais seu número aumentará.
— Qual é teu parecer?
— Se vós permitirdes, meu príncipe, vou soltar rédeas aos meus cavalos.
— Estás seguro deles?
— Eu respondo por eles.
— E de nós, tu respondes?
O cocheiro não disse palavra. Era evidente que não queria se comprometer. Ele soltou rédea aos cavalos, em direção ao castelo. Lançados com todo fôlego, aguilhoados pelo terror, os cavalos dobraram a velocidade. A distância era literalmente devorada por seus ímpetos desesperados. O cocheiro os excitava ainda por um assobio agudo, ao mesmo tempo que faziam uma curva que devia cortar uma das pontas da meia-lua. Os lobos afastaram-se, para abrir passagem aos cavalos. Os caçadores iam disparar, mas o cocheiro gritou:
— Por vossa vida, não atireis mais!
Obedeceu-se ao cocheiro.
Aturdidos com aquela manobra inopinada, os lobos permaneceram um instante indecisos. Durante esse instante a troika percorreu um quilômetro, e quando os lobos voltaram a persegui-la, já era demasiado tarde. Não a puderam alcançar.
Um quarto de hora depois, estava-se à vista do castelo. O príncipe calculou que durante esse tempo os cavalos percorreram mais de duas léguas. No dia seguinte, visitou a cavalo o campo de batalha e encontrou as ossadas de mais de duzentos lobos.
Como se vê, não faltam emoções nesse tipo de caçada.
Alexandre Dumas, Pai
Extraído do site Contos bem Contados
O dia se tinha escoado em meio a exaustivos cuidados para evitar o naufrágio, e a noite começava a descer. Aproximávamo-nos de Messina, e eu me lembrava da profecia do piloto, que nos havia anunciado que duas horas após a Ave-Maria teríamos chegado ao nosso destino. Isso me recordou que desde nossa partida eu não havia visto nenhum dos nossos marinheiros cumprir ostensivamente os deveres da Religião, que no entanto os filhos do mar consideram sagrados.
Havia mais: uma pequena cruz de oliveira incrustada de nácar, semelhante àquelas que os monges do Santo Sepulcro fazem e os peregrinos trazem de Jerusalém, havia desaparecido de nossa cabine, e eu a havia reencontrado na proa da embarcação, acima de uma imagem da Madonna di Pie’ di Grotta, sob a invocação da qual nossa pequena embarcação estava colocada. Depois de me ter informado se havia um motivo particular para mudar a cruz de lugar, e ter sabido que não, eu a retomei de onde estava e a levei à cabine, na qual ficou desde então. Estava claro que a Madonna, agradecida sem dúvida, nos protegera na hora do perigo.
Nesse momento eu me virara, e percebi o capitão próximo a nós.
— Capitão — disse-lhe — parece-me que em todos os navios napolitanos, genoveses ou sicilianos, quando vem a hora da Ave-Maria, se faz uma prece em comum. Não é esse o seu hábito a bordo do Speronare?
— De fato, Excelência, de fato! — respondeu vivamente o capitão — E devo esclarecer que estamos embaraçados por não o podermos fazer.
— Mas o que o impede?
— Desculpe-me, Excelência, mas como nós conduzimos com freqüência ingleses que são protestantes, gregos que são cismáticos e franceses que não são nada, temos sempre receio de ferir a crença ou de excitar a incredulidade de nossos passageiros pela vista de práticas religiosas que não serão as deles. Mas quando os passageiros nos autorizam a agir cristãmente, somos muito agradecidos a eles por isso. De sorte que, se o permite…
— Como não, capitão! Eu lhes peço, e se quiserem podem começar em seguida; parece-me que já está próximo das dezoito horas…
O capitão tirou seu relógio, e vendo que não havia tempo a perder, anunciou em voz alta:
— A Ave-Maria!
A estas palavras, cada um saiu das escotilhas e lançou-se no convés. Mais de um, sem dúvida, já havia começado mentalmente a Saudação Angélica, mas a interrompeu para vir tomar parte na prece geral.
De um extremo ao outro da Itália, essa oração, que cai em uma hora solene, encerra o dia e abre a noite. Esse momento do crepúsculo, em toda parte cheio de poesia, no mar se acresce de uma santidade infinita. Essa misteriosa imensidade do ar e das ondas, esse sentimento profundo da fraqueza humana comparada ao poder onipotente de Deus, essa escuridão que avança, e durante a qual o perigo sempre presente vai ainda crescer, tudo isso predispõe o coração a uma melancolia religiosa, a uma confiança santa que soergue a alma nas asas da fé. Essa tarde sobretudo, o perigo do qual acabáramos de escapar, e que nos era lembrado de tempos em tempos por uma onda encapelada ou rugidos longínquos, tudo inspirava à tripulação e a nós um recolhimento profundo.
No momento em que nos juntávamos no convés, a noite começava a tornar-se mais espessa no oriente. As montanhas da Calábria e a ponta do cabo de Pelora perdiam sua bela cor azul para se confundir em uma tintura acinzentada que parecia descer do céu, como se estivesse caindo uma fina chuva de cinzas. A ocidente, um pouco à direita do arquipélago de Lipari, cujas ilhas de formas extravagantes destacavam-se com vigor sobre um horizonte de fogo, o sol alargado e listrado de longas faixas violetas começava a embeber a orla de seu disco no Mar Tirreno, que, cintilante e movimentado, parecia rolar ondas de ouro fundido.
Nesse momento o piloto levantou-se atrás da cabine e tomou em seus braços o filho do capitão, que pôs de joelhos sobre o estrado. Abandonando o leme, como se a embarcação estivesse suficientemente guiada pela oração, sustentou o menino para que o balanço não lhe fizesse perder o equilíbrio. Esse grupo singular destacou-se logo sobre um fundo dourado, semelhante a uma pintura de Giovanni Fiesole ou de Benozzo Gozzoli. Com uma voz tão fraca que apenas chegava até nós, e que entretanto subia até Deus, começou a recitar a prece virginal, que os marinheiros escutavam de joelhos, e nós inclinados.
Eis uma dessas lembranças para as quais o pincel é inábil e a pena insuficiente; eis uma dessas cenas que nenhuma narração pode descrever, nenhum quadro pode reproduzir, porque a sua grandiosidade está inteira no sentimento íntimo dos atores que a realizam. Para um leitor de viagens ou um amador das coisas do mar, será apenas uma criança que ora, homens que respondem e um navio que flutua. Mas para qualquer um que tiver assistido a uma cena assim, será um dos mais magníficos espetáculos que ele tenha visto, uma das mais magníficas lembranças que ele tenha guardado. Será a fraqueza que reza, a imensidade que olha, e Deus que escuta.
Alexandre Dumas, Pai
Extraído do blog Contos bem Contados
No Ferdj-Ouah existe um xeque chamado Bou-Akas-Ben-Acour. Trata-se de um dos nomes mais antigos do país, que aparece na história das dinastias bérberes e árabes de Ibn Khaldoun.
Bou-Akas (o homem de maça), também conhecido como Bou-d’Jenoui (o homem do punhal), é um tipo admirável de beduíno do Leste. Seus ancestrais conquistaram Ferdj-Ouah, e Bou-Akas, após ter consolidado a conquista, reina agora sobre o “belo país”.
O xeque El-Islam-Mohamed-Ben-Fagoune, que fora guindado ao poder pelo marechal Valée, convenceu Bou-Akas a reconhecer o poderio francês. Em sinal de vassalagem, enviou este um cavalo de Gada ao governador, mas recusou-se a ir pessoalmente. Temia ser feito prisioneiro dos franceses.
O xeque tem quarenta e nove anos de idade e veste-se à maneira cabila: um manto de lã com cinturão de couro e um capuz debruado de corda fina. Traz à bandoleira um par de pistolas e um “flissa” cabila ao lado esquerdo; do pescoço pende-lhe um pequeno punhal negro. À sua frente caminha um negro, levando-lhe o fuzil, e ao seu lado cabriola um grande galgo.
Quando alguma tribo vizinha às doze tribos por ele comandadas lhe causa qualquer dano, Bou-Akas desdenha de marchar contra os ofensores e contenta-se com enviar seu negro à vila. Este exibe ali o fuzil do xeque, e o dano fica reparado.
Bou-Akas tem a seu serviço duzentos ou trezentos Tolbas, que lêem o Corão ao povo. Todo peregrino que, em viagem a Meca, atravesse o país, recebe subsídios de três francos e permissão para demorar-se no Ferdj-Ouah, como hóspede do xeque, pelo tempo que deseje. Todavia, quando chega ao conhecimento de Bou-Akas qualquer denúncia de ser o peregrino algum impostor, ele envia seus guardas à procura do culpado. Uma vez localizado este, os guardas o deitam de bruços e aplicam-lhe cinqüenta bastonadas à planta dos pés.
Há ocasiões em que o xeque tem trezentos convidados ao jantar. Ao invés de compartilhar das iguarias, fica a caminhar em meio aos convidados, apoiado a um bordão, supervisando o serviço dos criados. Mais tarde, caso tenha sobrado alguma coisa, come também, mas sempre por último.
Seu domínio se estende de Mali a Raboue, da ponta sul da Babour até duas milhas aquém de Gigelli. Quando o governador de Constantinopla — o único homem de quem reconhece o poder — encaminha-lhe algum viajante, sendo este pessoa de prol ou portador de boas recomendações, Bou-Akas entrega-lhe seu fuzil, seu cão ou seu punhal. Se recebe o fuzil, o viajante o pendura a tiracolo; se recebe o cão, prende-o por uma correia; se recebe o punhal, ata-o ao pescoço. De posse de qualquer desses talismãs, todos investidos de determinado grau de honra, pode atravessar incólume as doze tribos. Onde quer que se encontre, recebe hospedagem, já que é um protegido de Bou-Akas.
Ao deixar o Ferdj-Ouah, pode o viajante entregar o punhal, o fuzil ou o cão a qualquer árabe que encontre. Este, se estiver caçando, abandonará a caça; se estiver lavrando, largará a charrua; se estiver entre seus familiares, deixá-los-á, para ir entregar ao xeque seus pertences.
O pequeno punhal de cabo negro é tão conhecido, que emprestou seu nome a Bou-Akas, também conhecido por Bou-d’Jenoui, o homem do punhal. Com ele Bou-Akas apressa o curso da justiça, quando degola algum culpado.
Ao assumir o governo, Bou-Akas encontrou o país infestado de ladrões, mas logo descobriu um meio de liquidá-los. Vestiu-se de mercador e deixou cair uma moeda de ouro na rua, tendo o cuidado de não perdê-la de vista. Uma moeda de ouro não permanece muito tempo assim abandonada. Quando alguém a apanhava e a colocava no bolso, Bou-Akas fazia um sinal ao seu “chaousse”, também disfarçado de mercador, e este, sabedor das intenções do amo, encarregava-se de agarrar o culpado e de decapitá-lo na mesma hora.
Hoje os beduínos costumam dizer que uma criança de doze anos pode atravessar o Ferdj-Ouah com uma coroa de ouro à cabeça, sem que ninguém estenda a mão para roubá-la.
O pequeno punhal do xeque goza de muita reputação entre os pastores das montanhas cabilas. Estes, ao se queixarem de alguma cabra muito vadia, costumam gritar-lhe:
— La guela ou Djinoni Bou-Akasli oulli fi gabta — que quer dizer: Que a morte te leve, e que seja a navalha de Bou-Akas aquela a ser embainhada.
Bou-Akas tem grande respeito pelas mulheres. Assim, estabeleceu no Ferdj-Ouah um costume: quando as mulheres estão enchendo na fonte os seus cantis de pele de bode, os homens devem desviar-se, para não encontrá-las.
Certo dia Bou-Akas — que depois do que relatamos poderia bem ser chamado “o pai da justiça” — ouviu falar de um cádi de uma de suas doze tribos que pronunciava sentenças dignas do rei Salomão. Como um novo Harum-al-Raschid, quis ajuizar pessoalmente da verdade do que lhe contavam. Trajou-se, pois, como simples cavaleiro, sem levar nenhum dos atributos ou armas que o distinguiam, e sem qualquer comitiva pôs-se a caminho, montando um cavalo de raça que, não obstante, nada trazia que pudesse denunciá-lo como o de tão grande chefe.
Aconteceu que no dia em que chegou à povoação onde o cádi fazia justiça era dia de feira, e em conseqüência dia de julgamento. Aconteceu ainda (em tudo protege Maomé seu servo!) que, à entrada da cidade, encontrou Bou-Akas um aleijado, e este, agarrando-se ao seu albornoz como o pedinte ao manto de São Martinho, rogou-lhe uma esmola.
Bom muçulmano que era, Bou-Akas deu-lha, mas o aleijado continuou agarrado ao seu manto.
— Que queres mais? — perguntou o xeque. — Já te dei a esmola que pediste.
— Sim — retrucou o aleijado — mas a lei não diz apenas “darás esmola a teu irmão”. Diz também: “Farás por ele tudo quanto lhe pedir”.
— Pois bem. Que mais posso fazer por ti?
— Poderás evitar que eu, pobre réptil, seja pisoteado pelos homens e pelos animais, coisa que não deixará de acontecer se eu for rastejando até a vila.
— E como poderei impedir isso?
— Levando-me à garupa de teu cavalo até a praça do mercado, onde tenho meu ponto.
— Pois seja — concordou Bou-Akas. E erguendo o aleijado, ajudou-o a montar.
Apesar de algumas dificuldades, a operação foi coroada de êxito. Os dois cavaleiros atravessaram a povoação, não sem excitar a curiosidade geral, e chegaram finalmente à praça.
— É aqui que querias vir? — perguntou Bou-Akas ao mendigo.
— Sim.
— Então desce.
— Desce tu.
— Se é para te ajudar a desmontar, descerei.
— Não, é para deixar-me o cavalo.
— Como, deixar-te meu cavalo?
— Porque o cavalo me pertence.
— Pois sim! É o que veremos.
— Escuta e reflete — disse o aleijado.
— Escutarei e refletirei depois.
— Estamos na povoação do cádi justiceiro.
— Eu sei.
— Vais apresentar queixa contra mim ao cádi?
— É possível que o faça.
— Acreditas então que ele, ao ver-nos — tu com as pernas sãs que Deus te deu, eu com estas pobres pernas aleijadas — não decidirá que o cavalo pertence àquele que mais necessita dele?
— Se proferir tal sentença, não poderá ser chamado de justiceiro, pois ter-se-á enganado no seu julgamento.
— Chamam-no de cádi justiceiro, mas não o chamam de cádi infalível.
— Por minha fé — disse o xeque consigo mesmo. — Eis uma excelente oportunidade de pôr o juiz à prova.
Vamos à presença do cádi.
E Bou-Akas, levando o cavalo pela brida, a cuja garupa estava agarrado o mendigo como um macaco, abriu caminho por entre a turba até onde o cádi, à moda do Oriente, fazia justiça publicamente.
Duas causas estavam em litígio, e iriam ser julgadas antes. Bou-Akas tomou lugar entre a assistência. A primeira das causas era entre um “taleb” e um camponês — entre um sábio e um trabalhador. Tratava-se da mulher do sábio, que o camponês roubara e jurava ser sua. A mulher, por sua vez, não reconhecia nem a um nem a outro como seu marido, ou melhor, reconhecia ambos, o que tornava a situação extremamente embaraçosa.
O juiz ouviu as duas partes, refletiu por um instante e disse:
— Deixai-me a mulher e voltai amanhã.
Após saudarem o juiz, ambos os litigantes se retiraram.
Chegou a vez da segunda causa. Esta envolvia um açougueiro e um vendedor de azeite. O primeiro tinha as vestes todas manchadas de sangue, e o segundo tinha-as enodoadas de óleo. Declarou o açougueiro:
— Fui comprar uma jarra de azeite a este homem. Para pagá-lo, tirei da bolsa um punhado de moedas. As moedas o tentaram, e ele agarrou-me o pulso. Chamei-o de ladrão, mas ele não quis soltar-me. Viemos juntos ao tribunal, eu com as moedas fechadas na mão, ele agarrado ao meu pulso. Juro por Maomé que este homem mente quando diz que o dinheiro lhe pertence: estas moedas são minhas, muito minhas.
Disse o mercador de azeite:
— Este homem veio comprar azeite na minha loja. Depois de encher a jarra, perguntou-me: “Tens troco para uma peça de ouro”? Enfiei a mão no bolso e tirei-a cheia de moedas, que coloquei sobre a soleira da porta. Ele então se apoderou do dinheiro e já ia fugir, quando comecei a gritar “pega ladrão!” e agarrei-o pelo pulso. Apesar dos meus gritos, não quis devolver-me o dinheiro. Por isso trouxe-o até aqui, para que o julgues. Juro por Maomé que este homem mente quando me acusa de roubo: estas moedas são minhas, muito minhas.
O juiz meditou por uns instantes.
— Deixai o dinheiro — disse o juiz — e voltai amanhã.
O açougueiro depositou as moedas numa dobra do manto do cádi. Feito isto, ambos os queixosos, depois de terem saudado o juiz, se retiraram.
Chegou a vez de Bou-Akas e o aleijado.
— Senhor cádi — declarou o xeque — vim de uma vila distante, com o propósito de comprar mercadorias neste mercado. À porta da povoação, encontrei este aleijado que me pediu esmola e rogou-me em seguida que o levasse à garupa do meu cavalo até o mercado. Alegou que, se se arriscasse às ruas, pobre réptil que é, corria o risco de ser pisoteado por passantes ou animais. Dei-lhe a esmola que pedira e ajudei-o a montar. Quando chegamos à praça, recusou-se a descer, mentindo que o cavalo lhe pertencia. Ameacei-o com a justiça, mas ele respondeu-me: “Bah! O cádi é homem sensato demais para não compreender que o cavalo pertence àquele que não pode andar a pé”. Eis o caso em toda a sua verdade, senhor juiz. Juro por Maomé!
Depois disso, o mendigo declarou:
— Senhor cádi, eu vinha ao mercado desta cidade para tratar de negócios, montado em meu cavalo, quando vi este homem sentado à beira da estrada. Parecia semi-agonizante. Aproximei-me dele e perguntei-lhe se lhe ocorrera algum acidente. “Nada me aconteceu — respondeu. — Estou apenas exausto, e se o senhor é caritativo, poderia bem levar-me até a vila, onde tenho negócios a tratar. Quando chegarmos à praça do mercado, desmontarei e rogarei a Maomé que dê, a quem me prestou socorro, tudo quanto possa desejar”. Assenti ao seu pedido, e grande foi o meu espanto quando, chegados à praça, ele ordenou-me que desmontasse, dizendo que o cavalo lhe pertencia. Diante disso, resolvi trazê-lo ao tribunal, para que julgues o caso. Eis toda a verdade. Juro por Maomé!
O cádi fez ambos repetirem seus depoimentos. Depois de refletir por alguns instantes, ordenou:
— Deixem-me o cavalo e voltem amanhã.
O cavalo foi entregue ao cádi, e ambos os litigantes, após terem reverenciado o juiz, se retiraram.
Na manhã seguinte, não apenas os interessados, como grande número de curiosos, compareceram ao tribunal. A importância e a dificuldade das causas em litígio explicam tamanha afluência de espectadores. O cádi, seguindo a mesma ordem da véspera, chamou em primeiro lugar o “taleb” e o camponês, e disse ao “taleb”:
— Eis tua mulher. Podes levá-la, ela te pertence.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Aplicai cinqüenta bastonadas à planta dos pés desse homem — acrescentou, indicando o camponês.
O “taleb” levou consigo a mulher, enquanto os guardas cumpriam as ordens do cádi.
Logo em seguida foi julgada a segunda causa. O mercador do azeite e o açougueiro aproximaram-se, e o cádi disse ao açougueiro:
— Eis teu dinheiro. Tu o tiraste realmente da tua bolsa; jamais pertenceu a esse homem — finalizou, apontando para o mercador de azeite.
O açougueiro levou suas moedas, e os guardas aplicaram cinqüenta bastonadas à planta dos pés do mercador.
Foi convocada a terceira causa. Bou-Akas e o aleijado se aproximaram.
— Ah! sois vós — disse o cádi.
— Sim, senhor juiz — responderam ambos, a uma só voz.
— Reconhecerias teu cavalo em meio a vinte outros? — perguntou o cádi a Bou-Akas.
— Certamente — respondeu este.
— E tu?
— Sem dúvida alguma — retorquiu o aleijado.
— Vem então comigo — ordenou o cádi, dirigindo-se ao xeque.
Saíram juntos em direção à cavalariça. Bou-Akas reconheceu seu cavalo entre vinte outros.
— Muito bem — disse o cádi. — Vai esperar-me no tribunal e manda-me teu adversário.
Bou-Akas voltou ao tribunal, e tendo cumprido o mandado do juiz, sentou-se à espera.
O mendigo chegou à cavalariça tão depressa quanto lhe permitiam as pernas aleijadas. Mas seus olhos eram sãos, e ele apontou sem hesitação para o cavalo certo.
— Muito bem — disse o cádi, mais uma vez. — Vem encontrar-me no tribunal.
O cádi tomou lugar à esteira, e todos, impacientes, ficaram à espera do aleijado. Este chegou, ofegante, ao cabo de cinco minutos.
— O cavalo é teu — disse o juiz, dirigindo-se a Bou-Akas. — Podes ir buscá-lo na cavalariça.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Apliquem cinqüenta bastonadas no traseiro desse homem — ordenou, indicando o aleijado.
Homem justo que era, levara em consideração as condições físicas do réu e mudara o local de aplicação do castigo.
Bou-Akas foi buscar seu cavalo, enquanto os guardas aplicavam as cinqüenta bastonadas no aleijado.
Depois voltou à presença do cádi.
— Não estás satisfeito? — perguntou-lhe este.
— Pelo contrário — replicou o xeque. — Mas queria ver-te para saber por que inspiração divina praticas justiça. Pois não duvido que os dois outros julgamentos tenham sido tão justos quanto o meu. Não sou nenhum mercador, sou Bou-Akas, xeque do Ferdj-Ouah. Ouvi falar de ti e quis conhecer-te pessoalmente. O cádi inclinou-se para beijar a mão de Bou-Akas, mas este o deteve.
— Vamos, estou impaciente por saber como descobriste que a mulher era do sábio, o dinheiro do açougueiro e o cavalo meu.
— Foi muito simples, senhor — replicou o cádi. — Viste que retive comigo, durante uma noite, a mulher, o dinheiro e o cavalo. À meia-noite, ordenei que a mulher fosse despertada e trazida à minha presença. Mandei-a então limpar o meu tinteiro. Dando provas de que estava habituada a fazer tal serviço, ela o apanhou, tirou-lhe o algodão, lavou-o corretamente, colocou-o de novo no estojo e encheu-o de tinta. Disse comigo mesmo: “Se fosse mulher de camponês, não saberia como limpar um tinteiro”.
— Seja — admitiu Bou-Akas. — Isso quanto à mulher. E quanto ao dinheiro?
— Com o dinheiro foi diferente. Notaste como o mercador estava sujo de óleo, e sobretudo como tinha as mãos engorduradas?
— Sim, notei.
— Pois bem. Coloquei o dinheiro numa jarra cheia d’água, e hoje de manhã examinei-a. Nenhuma gota de óleo subira à superfície da água. Convenci-me, pois, de que as moedas pertenciam ao açougueiro. Se fossem do mercador, estariam engorduradas, e nesse caso haveria gota de óleo à superfície.
— Muito bem! — concordou Bou-Akas, inclinando a cabeça. — Isso quanto ao dinheiro. E quanto ao meu cavalo?
— Ah! Foi mais difícil. Até esta manhã estava ainda embaraçado para decidir.
— Quer dizer que o aleijado não reconheceu a montaria?
— Ele a reconheceu, e de modo tão positivo quanto o senhor.
— E então?
— Quando levei cada um de vós à estrebaria, não pretendia saber se reconheceríeis o cavalo, e sim se o cavalo os reconheceria. Quando te aproximaste do cavalo, ele relinchou. Quando foi a vez do aleijado, o cavalo escoiceou. Refleti então: o cavalo pertence àquele que tem boas pernas, e não ao aleijado.
Bou-Akas meditou por longo tempo. Por fim, disse:
— O Senhor está contigo. Deverias ocupar o meu lugar, e eu o teu. Contudo, embora eu esteja certo de que és digno de ser xeque, não estou muito certo de ser eu capaz de desempenhar satisfatoriamente o cargo de cádi.
Alexandre Dumas, Pai
Extraído do blog Contos bem Contados